Jô Brandão e as Comunidades Tradicionais
Jô Brandão, Quilombola e assessora técnica do Ministério da Cultura
“Queria pedir licença para estar nesse lugar porque considero ele sagrado, por ter aqui hoje presente tanta sabedoria, tanta espiritualidade e tanta energia naquilo que a gente chama de preservação da natureza e das coisas que a gente acredita. Quero fazer algumas reflexões a partir da minha experiência de vida e do trabalho com Comunidades Tradicionais que venho desenvolvendo.
É muito importante perceber que existe uma profunda aliança nos povos que se definem como comunidades tradicionais. Fico honrada de partilhar esse momento com tantas pessoas dos mais diferentes lugares, crenças e expressões. Fico honrada porque eu me reconheço em cada um que está aqui presente. Mesmo sendo tão diferentes, temos várias coisas em comum. Ontem, quando a Vovó Mona Polacca cantou, me senti acalentada e disse, ‘eu tenho algo com essa mulher’. Hoje quando eu cheguei e vi o adorno nos seus ombros, eu me reconheci porque lá no Maranhão, a terra onde nasci, esse mesmo adorno que a Sra. usa é usado pelas vodunces da Casa das Minas que é a única casa de culto aos voduns no Brasil. E é por isso que eu me sinto honrada e me reconheço em você. Algo nós temos em comum. Essa aliança da qual eu falo nunca vai acabar. E é por isso que nós somos tão fortes. Lutamos para preservar nossos territórios porque queremos estar sempre bem no lugar que nós concebemos. A gente não acredita em uma natureza sem seres humanos. Se está preservado, é porque alguém preservou.
[…] Na minha crença, que é o Candomblé, Ketu, temos uma visão de mundo em que todos os elementos da natureza são regidos pelos Orixás. E além de nós, seres humanos, entidades espirituais estão nessa luta. A luta, como a de Belo Monte, está em dois universos. Nos indígenas que são fisicamente visíveis e nas entidades espirituais que são invisíveis, que só são sentidas por quem é capaz de aguçar os sentidos. E nem todo mundo tem tempo para isso. Quem tem tempo, luta. Nesse sentido, essa aliança é muito sagrada. Por isso eu considero que todas as comunidades tradicionais são parentes. Eu não sou indígena, mas no terreiro da minha casa os indígenas, os ciganos, os caboclos, os boiadeiros são tratados como reis e como rainhas. Eu aprendi assim. Portanto, eu me reconheço no ritual indígena e me reconheço no ritual dos negros, eu sou parte disso. E essa aliança não está escrita, e é bom que não esteja. Ela é silenciosa.
Gostaria de contar um “itan” que para nós, africanos, é uma história. Dizem que uma aldeia estava prestes a se acabar. Todo mundo estava desesperado e Orumilá, o mais velho, começou a levantar de manhã com seu saco de sementes e sair plantando árvores. Todo mundo achou que ele estava ficando louco; já estava muito velho e os outros Orixás começaram a ficar preocupados.
‘Orumilá não está bem, está sabendo que tudo vai acabar e porque está plantando árvores? Temos muitas outras coisas a fazer!’. E reuniram os Orixás para questionar porque ele estava plantando árvores e não estava resolvendo as coisas, já que a aldeia ia acabar. E ele disse: ‘eu não estou plantando árvores para mim. Eu estou plantando árvores para os meus filhos e para os meus netos’.
Esse itan é a mais pura representação da nossa ancestralidade. Ela não acaba, ela é contínua. É um conjunto de referências que vamos criando para as nossas gerações e aí nasce uma árvore sagrada para nós que somos do Axé. Continua até hoje. É nesse sentido e nessa perspectiva que a luta das comunidades tradicionais se perpetua, porque nós somos ancestrais, nós somos circulares, nós somos coletivos.
Uma última coisa que eu queria partilhar. A luta das comunidades tradicionais no Brasil não é pequena. Tem um elemento que é forte e comum a todos, que é a luta pelo território. Esse território não é um mero pedaço de chão, de terra. É a forma como nós vivemos, no lugar em que nós estamos. Nascemos, nos criamos e é ali que queremos continuar.
Muitos projetos estão impactando a vida das comunidades tradicionais. O Brasil é um país rico, de uma vasta dimensão de terras propícias para a agricultura e muitas águas, mas os maiores projetos desse país, pensados no modelo desenvolvimentista, impactam a vida das comunidades tradicionais. Belo Monte é um exemplo, não é o único. Quase todos os territórios tradicionais brasileiros estão ameaçados em função dos grandes projetos. Por isso é importante a manutenção dessa aliança. Se o problema é em Belo Monte, não é dos indígenas, é da sociedade brasileira; se o problema é dos quilombolas, não é só dos quilombolas, é da sociedade brasileira.
Vou encerrar pedindo licença para saudar, para cantar para um ancestral, contando um itan de uma Orixá, Oxum, que em um determinado momento se viu em uma situação de dificuldade. Em torno de Oxum, que é a deusa das águas doces, tinha um círculo de fogo e ela estava muito desesperada. ‘Como vou sair disso?’ Oxum não jogou água para apagar o fogo. Isto nos revela que os elementos se entendem e que eles não podem ser separados. Para se salvar, para atravessar o fogo, ela juntou a saia e cantou:
“Ora iê iê omi axó lélé, Ora iê iê omi axó lélé, Ora iê iê omi axó lélé, Ora iê iê omi axó lélé, Ora iê iê omi axó lélé, Ora iê iê omi axó lélé”.
Diz a canção: ‘eu atravesso o fogo porque as minhas vestes, as minhas roupas, são de água’. Assim como Oxum atravessou o fogo sem apagá-lo, nós continuaremos a luta com a força que nós temos”.